Opinião – Gastronomia sustentável, um direito
Somos o que comemos?
“Somos o que comemos”. É uma simplificação que roça o absurdo, e isto de “ser” tem pouco de claro. Mas consegue fazer sentido olhar para o alimento enquanto “matéria-prima” que os corpos usam para se desenvolver, funcionar e reparar. Diria também, a alimentação enquanto interface fundamental que nos liga a imensos espaços, tempos, processos e ciclos que geram isso que comemos – que por sua vez passa por nós e continua a sua “dança”. Esta “dança” conta histórias: algumas sobre as forças transversais que possibilitam a realidade (que conhecemos), outras acerca de formas de fazer, estar, fruir, expressar, lembrar. Tudo isto nos constrói, instrui e forma. A gastronomia assume o seu campo de estudo nestas relações complexas. Anexar-lhe o termo “sustentabilidade” torna ainda mais difícil navegar o que quererá dizer e como se praticar.
A Segurança Alimentar para garantir o Direito à Alimentação
Para lá chegarmos, talvez faça olharmos para o Direito à Alimentação, a Segurança e a Soberania Alimentares. A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra o assegurar da alimentação como um direito de todxs, no garante da saúde e do bem-estar. Para concretizar essa garantia já pulamos para o conceito de Segurança Alimentar, muitas vezes evocado de forma redutora e no sentido estrito da produção quantitativa. Segundo a Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar Mundial, a Segurança Alimentar só é atingida “quando todas as pessoas a nível individual, familiar, nacional, regional ou global têm, em todo o momento, acesso físico e económico a uma quantidade suficiente de alimentos seguros e nutritivos para satisfazer as suas necessidades e preferências alimentares e nutricionais, a fim de levarem uma vida activa e saudável”.
Para satisfazer o Direito à Alimentação é então necessário que haja Segurança Alimentar, que é sobretudo uma questão de acesso, qualidade e escolha. Portanto os sistemas alimentares têm de satisfazer três requisitos: 1) a disponibilidade, relativa há existência de alimentos suficientes; 2) a acessibilidade, para que os alimentos estejam ao acesso de todxs e a sua aquisição não comprometa a satisfação de outras necessidades básicas; e 3) a adequação, assegurar os alimentos satisfazem as necessidades de cada dieta particular, são aptos para consumo, livres de substâncias nocivas e são culturalmente aceitáveis. Adicionalmente, é necessária estabilidade nestes três requisitos.
Como se enquadram os impactes sociais e ambientais na segurança alimentar?
No entanto, esta definição Segurança Alimentar é omissa quanto aos impactes sociais e ambientais indiretos, advindos da própria configuração dos sistemas alimentares, dos modelos de produção, distribuição e consumo. É possível satisfazer os três requisitos, ainda que degradando os ecossistemas e colocando à margem as populações no que toca as decisões sobre a sua própria alimentação, o que não pode ser considerado sustentável. A curto, médio ou longo prazo, a ausência destas considerações pode pôr em causa os próprios requisitos para assegurar o Direito à Alimentação. É preciso dar um salto e considerar um outro conceito: a Soberania Alimentar. Tomemos a Declaração de Nyéléni, que estabelece boas bases: “a Soberania Alimentar é o direito dos povos a uma alimentação saudável e culturalmente adequada, produzida por métodos ecologicamente corretos e sustentáveis, e o direito à definição dos seus próprios sistemas alimentares e agrícolas”. Mais afirma a necessidade de encurtar as cadeias agro-alimentares, de empoderar os pequenos agricultores, de zelar pela transparência no comércio e contribuir para relações sociais livres de opressão.
A nível da União Europeia (UE), não está em causa a disponibilidade de alimentos, mas ainda existem problemas de acessibilidade económica [i] [ii] que põem em causa o Direito a Alimentação, sobretudo nos períodos cíclicos de recessão, característicos do modelo económico vigente. A guerra na Ucrânia veio a desestabilizar os preços de matérias-primas e fatores de produção, com muito aproveitamento à mistura que, por exemplo, valeram lucros record para as multinacionais ligadas aos fertilizantes de síntese[iii] [iv], a custo de agricultores e de consumidores. As importações e exportações da UE têm um peso importante nos sistemas alimentares de globais, ao inundar países com alimentos subsidiados pelo espaço Europeu acaba por moldar e condicionar as situações locais dos países importadores. Na outra face da moeda, a importação de certas mercadorias, pode gerar impactes nefastos a nível socioeconómico[v] e ambiental[vi], ao ponto de já ter merecido resposta através de um novo regulamento Europeu, para produtos livres de desflorestação. A UE também desperdiça mais alimentos que aqueles que importa, o que chega a 20% da produção[vii]. A Política Agrícola Comum é no mínimo contraditória, já que os apoios públicos tendem a beneficiar grandes empresas, com efeitos questionáveis em termos ambientais e climáticos[viii] [ix]. Em Portugal, o modelo de intensificação agrícola associado ao regadio, possível através dos fundos da UE, mostra claros sinais de estar a provocar o colapso da biodiversidade em vários territórios[x] [xi] [xii] [xiii], sem falar do flagelo de exploração laboral, que roça a escravatura.
Do Prado ao Prato
A Estratégia do Prado ao Prato acontece na UE como uma aspiração de programação de políticas, no âmbito do Pacto Ecológico Europeu. Traça linhas moderadas, mas tenta empurrar para uma reforma para assegurar uma agricultura, distribuição e consumo dentro dos limites ambientais, com metas de redução de antimicrobianos, fertilizantes e pesticidas, para fortalecer a ambição perante o falhanço de implementação de legislação, como é ilustrativo a Diretiva Uso Sustentável (DUS). Reconhece o desperdício alimentar como de intervenção prioritária, assim como o consumo e as dietas alimentares. Para conseguir tudo isto aponta um conjunto de ações centrais: adotar um quadro legislativo para sistemas alimentares sustentáveis; rever os regulamentos de execução relacionados com a venda e uso de pesticidas (revisão da DUS, estatísticas sobre uso de pesticidas); iniciativas legislativas para melhorar a posição dos produtores primários na cadeia alimentar e para a captura de carbono nos solos; proposta de melhor rotulagem dos produtos e estabelecimento de metas de redução do desperdício alimentar.
Ainda que sejam pequenos passos no mesmo sentido que a política a nível Europeu já seguia, há todo um mar de impedimentos que elucidam bem o peso dos lobbies ligados ao agronegócio e à grande propriedade rural, aliado das vicissitudes de cada Estado-Membro. Como pode não ser consensual a redução em 50% do uso dos pesticidas mais perigosos? Afinal não diz o 3º requisito para a concretização do Direito à Alimentação que os alimentos devem ser livres de substâncias nocivas? Ao menos nesse ponto podemos concordar que, na UE, ainda não concretizámos a Segurança Alimentar no seu pleno.
Artigo escrito por Pedro Horta
[i] Eurostat (2018). Living conditions in Europe. 2018 Edition. Luxembourg: Publications Office of the European Union.
[ii] FAO et al. (2019). The State of Food Security and Nutrition in the World 2019
[iii] https://financialpost.com/commodities/agriculture/fertilizer-giant-nutrien-ltd-earns-us3-6b-as-global-demand-surges
[iv] https://www.reuters.com/business/fertilizer-sector-set-biggest-profits-years-russia-ukraine-conflict-2022-05-02/
[v] UNCTAD, Commodities & Development Report 2021 – “Escaping from the Commodity Dependence Trap through
Technology and Innovation”.
[vi] [vi] FAO, The State of Agricultural Commodity Markets 2021 – “The Geography of Food and agricultural Trade: Policy Approaches for Sustainable Development”
[vii] https://eeb.org/eu-wastes-more-food-than-it-imports-says-new-report/
[viii] https://theecologist.org/2018/may/23/special-investigation-how-common-agricultural-policy-promotes-pollution
https://theecologist.org/2018/may/24/special-investigation-part-ii-how-common-agricultural-policy-promotes-pollution
[ix] https://op.europa.eu/webpub/eca/special-reports/cap-and-climate-16-2021/en/
[x] https://listavermelha-flora.pt/
[xi] https://spea.pt/wp-content/uploads/2022/11/Estado-das-Aves_PT_2022.pdf
[xii] https://zero.ong/blog/noticias/regadio-coletivo-de-alqueva-tem-promovido-o-colapso-da-biodiversidade/
[xiii] https://zero.ong/blog/noticias/subsidios-agroambientais-beneficiam-projetos-agricolas-que-destruiram-habitats-protegidos/