GreenWatch: Poderá a “autoestrada da água” ser a solução para os problemas de escassez hídrica no sul do país?
A ideia não é nova, mas a narrativa em torno da necessidade de uma “autoestrada da água” ressurgiu nos últimos anos; em particular, no último ano, fruto de um Algarve a passar por uma das maiores secas de sempre, com as reservas de água a bater recordes mínimos e em risco de não serem suficientes para garantir o abastecimento público. A autoestrada da água ganhou novo folego no debate público, sendo apresentada como panaceia para os problemas causados pela seca e pela escassez de água no Sul do país, acoplada à ideia de que o Norte vive com excesso de água enquanto o Sul morre à sede.
Esta é uma ideia cada vez mais defendida pelo setor agrícola, que pretende ver satisfeitas a suas crescentes necessidades de água e ver aumentadas as áreas dedicadas à agricultura de regadio, contudo é uma proposta que está longe de gerar consensos.
Em que consiste a autoestrada da água?
A ideia consiste num sistema de transvases, que abrange as bacias hidrográficas do Douro-Tejo-Guadiana até ao Algarve, criando uma autoestrada da água pelo interior do País, num eixo Douro-Pinhel-Sabugal-Tejo-Nisa-Portalegre-Caia-Guadiana-Alqueva-Mértola-Alcoutim-Algarve.
Este sistema inclui um conjunto de estações elevatórias e canais, num comprimento total de aproximadamente 500 km o que implica um investimento na ordem dos 2.000.000.000 € para permitir o transvase de 1.500.00.00 m3/ano entre o Norte e o Sul.
A autoestrada teria uma primeira fase de construção a iniciar-se a Sul entre a Barragem do Alqueva até ao Pomarão (Mértola) de onde a água seria posteriormente transportada até à Barragem de Odeleite através de condutas com cerca de 35 km de extensão.
Uma segunda fase teria lugar entre a barragem do Fratel até à barragem do Caia, já no Guadiana, através de um canal de 115 km.
A autoestrada ficaria concluída com uma terceira fase entre o rio Douro (Pocinho) e o rio Tejo (Castelo de Bode) onde a água passaria pelas barragens do Sabugal, Barragem da Meimoa, Cabril, Bouçã até à barragem de Castelo de Bode, através de canais e tuneis, seguindo depois até à barragem do Fratel através de um canal com 95 km de extensão.
Quais as preocupações que um projeto desta natureza levanta?
Para além das preocupações mais óbvias e imediatas relacionadas com os custos associados à implementação das várias obras associadas à concretização da autoestrada da água e dos seus impactes sobre o preço da água que seria transportada, há outras questões que se levantam e às quais tentaremos dar resposta.
- Será o norte do país efetivamente excedente em água a ponto de podermos transportar parte dessa água (em excesso) para regiões mais deficitárias?
É um facto que as regiões do Norte estão sujeitas a uma precipitação anual mais elevada do que as regiões do Sul. No entanto, se recuarmos até 2022, um dos anos mais secos a nível global e ao qual Portugal não foi exceção ao viver um dos episódios de seca mais severa dos últimos 80 anos, a região norte também se viu afetada pela seca com muitas das suas barragens a atingirem mínimos históricos e com populações a terem de ser abastecidas com recurso a autotanques. Também muitas das culturas praticadas na região estiveram em risco pela falta de água e o governo chegou mesmo a impor a restrição à produção hidroelétrica a algumas barragens, incluindo barragens localizadas mais a norte, como foi o caso dos Aproveitamentos Hidroelétricos do Alto Lindoso e do Alto Rabagão.
- Poderá a autoestrada da água ser geradora de conflitos entre o Norte e o Sul?
Há muito que a disputa por água é uma realidade em várias partes do mundo, sendo mesmo motivo de conflitos. Uma dessas disputas acontece mesmo aqui ao lado, na vizinha Espanha, onde a escassez de água e a utilização de água do rio Tejo, com os transvases deste para o Segura (obra de 1979), para assegurar água para a prática agrícola na região de Múrcia, tem gerado atrito entre regiões particularmente entre os agricultores, o que já levou o governo espanhol a reduzir o caudal do transvase.
Uma autoestrada da água em Portugal poderá levar a consequências idênticas, sendo potenciadora de conflitos entre o Norte e o Sul. Os transvases não têm só a capacidade de afetar positivamente as disponibilidades hídricas no seu local de destino; eles também têm consequências sobre as disponibilidades hídricas na sua origem o que numa situação de crise, como a de 2022, em que seja necessário decidir se a prioridade está nas vinhas do Douro ou nas laranjas do Algarve, os conflitos serão praticamente certos.
- Não irá um projeto de transvases fomentar o aumento da procura por água?
Um aumento na disponibilidade de água a Sul trará consigo uma falsa sensação de abundância de água, o que terá consequências ao nível dos consumos. O maior aumento dos consumos estará associado às áreas de regadio que muito provavelmente irão sofrer uma significativa expansão, o que irá gerar novas necessidades de água. Considerando que as novas áreas de regadio serão ocupadas sobretudo por culturas permanentes em regime intensivo, as necessidades de água acrescidas serão também elas permanentes. Apesar do aumento das áreas de regadio ser muitas vezes defendido como potenciador do desenvolvimento económico e social das regiões, a verdade é que esse aumento, se for feito através de uma aposta numa agricultura de regime intensivo, traz consigo não só crescentes necessidades de água, mas também impactes socioambientais negativos como a proliferação de novas formas de escravatura, assente na exploração de mão-de-obra barata, proveniente sobretudo da Ásia e da África Subsariana, a instalação de monoculturas industriais a curta distância de localidades e habitações com impactes diretos sobre a qualidade de vida das populações, a contaminação das massas de água por poluição difusa, sobretudo por azoto (N) e fósforo (P) com consequências nefastas sobre a qualidade das massas de água ou a rápida transformação da ocupação e do uso do solo com uma significativa alteração dos valores naturais e culturais presentes.
Que outros caminhos temos de explorar para fazer face à escassez de água?
As alterações climáticas e os desafios que estas nos colocam, com secas cada vez mais frequentes e prolongadas e a escassez hídrica, exigem uma resposta adequada e integrada. É preciso optar por soluções que façam uso dos recursos existentes (humanos, económicos, naturais, etc.) de forma inteligente e sustentável, que assegurem o futuro do país e que garantam um impacto positivo na preservação dos recursos hídricos, na proteção do ambiente e na garantia do bem-estar das populações.
A resposta a estes desafios tem de passar sempre por uma maior eficiência no uso da água, eficiência essa que não será nunca compatível, por exemplo, com as atuais perdas no abastecimento que, em média, se situam próximas dos 30%, nem com perdas na agricultura acima dos 35%, pelo que reduzir significativamente estas perdas implicará um necessário investimento na reabilitação e manutenção das redes de abastecimento público e nos sistemas de transporte de água para a agricultura.
Assim, em alternativa a uma autoestrada da água, devemos equacionar a implementação de medidas como:
- A redução do consumo de água, através da implementação de tarifas em função dos consumos que permitam às entidades gestoras recuperar, se não a totalidade, pelo menos uma parte significativa dos gastos com a prestação do serviço, permitindo-lhes fazer investimentos na rede de distribuição para combate às perdas;
- A criação de incentivos à instalação de equipamentos de eficiência hídrica em edifícios como os destinados à reutilização de águas cinzentas ou ao aproveitamento de águas pluviais;
- Uma melhor gestão da água, através da monitorização e do controlo da qualidade e da quantidade da água disponível, da articulação entre os diferentes níveis de planeamento e de intervenção, da participação e da informação dos utilizadores e da sociedade e da promoção de uma cultura de responsabilidade e de cidadania hídrica;
- A limitação da expansão de áreas de regadio, através da definição de zonas prioritárias e de critérios de elegibilidade para o apoio público ao regadio, tendo em conta a disponibilidade e a qualidade da água, o tipo de cultura e o impacto ambiental;
- A promoção de uma agricultura sustentável, através da diversificação das culturas, da adoção de práticas de agricultura de conservação, da redução do uso de fertilizantes e fitofármacos, da valorização dos produtos locais e da certificação da qualidade ambiental;
- A contenção da expansão urbana, através da revisão dos planos diretores municipais e dos planos de ordenamento do território, de forma a limitar as áreas artificializadas e impermeabilizadas que têm impacte negativo na recarga dos aquíferos;
- Um incremento muito significativo da percentagem de água que é reutilizada. Em 2022, a percentagem de água reutilizada foi de 2,9 milhões de metros cúbicos, ou seja, apenas cerca de 0,4 % da água residual tratada em estações de tratamento.
Assim o nosso veredicto é: NÃO.