Transporte marítimo fora de rota
Esta é a história infeliz de como a Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla inglesa) falhou — novamente — em alinhar a trajetória de descarbonização do setor com o limite de 1,5ºC de aumento da temperatura até ao final do século, conforme estabelecido pelo Acordo de Paris.
Numa semana em que se registaram níveis recorde da temperatura global, todos os olhos e expectativas estavam postos em Londres, onde as nações marítimas discutiam o futuro do transporte marítimo e a revisão da Estratégia de redução de Gases de Efeito de Estufa (GEE) na 80.ª sessão da Comissão de Proteção do Ambiente Marinho da IMO. Mas os avanços foram lentos, opacos e muitas vezes incipientes e nem os apelos do Secretário-Geral das Nações Unidas foram suficientes para gerar um resultado verdadeiramente satisfatório. António Guterres pediu celeridade, a IMO ficou aquém, novamente.
Duas semanas de intensas discussões culminaram com um acordo alcançado em final de junho pelos 175 estados membros da IMO e, apesar da ovação estrondosa que irrompeu no plenário (que não foi, nem podia ter sido, partilhada pelos representantes e ativistas da sociedade civil), a verdade é que este resultado é realmente estrondoso, mas pela falta de coragem, de visão e de ambição.
Vale lembrar que a primeira Estratégia foi aprovada e adotada em 2018 e previa uma redução das emissões de GEE em 50% até 2050, em relação a 2008 — uma meta altamente irrealista e insustentável do ponto de vista ambiental e climático. E, face a um padrão tão baixo, a nova Estratégia apresenta realmente melhorias significativas.
O nível de ambição saiu efetivamente reforçado, procurando agora atingir zero emissões líquidas até ou perto de 2050, tendo em conta as especificidades nacionais. É um avanço, sem dúvida, mas é lamentável que os estados membros não tenham conseguido concordar com uma linguagem clara e inequívoca em torno do objetivo final e inultrapassável de 2050, persistindo alguma ambiguidade na referência a “perto de 2050”. O que é que isto significa? 2052? 2055? 2060? Não é claro. Mas é certamente um resultado melhor do que se antecipava a meio da semana, quando a linguagem ainda aludia a “algures a meio do século”. Parece absurdamente surreal que em plena crise climática os jogos de palavras convidativos a lacunas ainda sejam aceitáveis a este nível.
Foram ainda estabelecidos “checkpoints” indicativos para 2030 e 2040, prevendo-se uma redução total anual de emissões de GEE em pelo menos 20%, aspirando a 30%, em 2030 e pelo menos 70%, aspirando a 80% em 2040. Se estes valores serão suficientes? Se queremos manter-nos dentro do limite de 1,5ºC, a resposta é não. Aliás, uma análise do International Council on Clean Transportation (ICTT) mostra que as novas metas não são ainda compatíveis com o Acordo de Paris — 1,5ºC (mas compatíveis com 2ºC) e que colocam o setor do transporte marítimo a esgotar o respetivo orçamento de carbono no cenário de 1,5ºC em 2032 — altura na qual, segundo a nova Estratégia, o máximo de redução de emissões expectável é 30%. Para assegurar a compatibilização com o limite de 1,5ºC, é fundamental colocar o setor do transporte marítimo numa trajetória que permita alcançar 50% de redução de emissões em 2030 e zero emissões líquidas em 2040, e estes “checkpoints” indicativos não são suficientes.
Não é aceitável, nem tão pouco justo, que se continue a adiar o inevitável e a colocar a responsabilidade da ação nas próximas gerações ou nos países que menos contribuem para a crise climática.
Claro que metas indicativas não são vinculativas e, sem medidas adicionais, nem há garantias que sejam efetivamente cumpridas. É por isso que é tão importante existirem também medidas específicas que permitam efetivar e concretizar as metas e, aqui, o que a nova Estratégia nos traz é um plano de trabalho que prevê medidas técnicas, incluindo provisões para a utilização de combustíveis verdes, e medidas económicas, como a afamada taxa sobre as emissões de GEE, que deverão ser pensadas e implementadas a partir de 2027.
Não deixa de ser irónico que, enquanto pequenos estados insulares do Pacífico enfrentam uma luta verdadeiramente existencial, outros como a China ou a Índia agarram-se com unhas e dentes a uma economia dependente de fósseis, contribuindo para perpetuar a crise climática. De facto, foram os países do Pacífico, como o Vanuatu ou as Ilhas Marshal que salvaram o acordo do fracasso, garantindo metas intercalares mais ambiciosas. Mas não é aceitável, nem tão pouco justo, que se continue a adiar o inevitável e a colocar a responsabilidade da ação nas próximas gerações ou nos países que menos contribuem para a crise climática.
Ainda assim, e na ausência de verdadeira liderança por parte da IMO, alguém terá de pegar no leme e garantir que o barco não afunda. E é aqui que surge alguma réstia de esperança, já que não precisamos de esperar pela IMO para agir: é possível tomar medidas ao nível local, nacional e mesmo regional para reduzir significativamente as emissões do setor e ter um impacto global. Para isto, basta “apenas” vontade política e coragem de investir em novas tecnologias e combustíveis que permitam não só aumentar a eficiência dos navios, como colocar o setor numa rota de descarbonização justa e compatível com o Acordo de Paris.
Chegou verdadeiramente a hora de a União Europeia, do Reino Unido, dos Estados Unidos da América e todos os outros atores, públicos e privados, com vontade e capacidade de agir, aproveitarem todo o potencial do vento, dos corredores verdes, das energias renováveis, da redução de velocidade, da eficiência energética e da taxação de GEE, para efetivarem uma transição célere e justa para o transporte marítimo internacional.
Artigo escrito por Carolina Silva.