Início » 600 dias insuficientes para tirar o óleo de palma dos biocombustíveis
Assinala-se hoje, 24 de agosto, 600 dias após a data indicada pelo governo português para a restrição da comercialização e produção de combustíveis ou biocombustíveis que contenham óleo de palma. Esta foi uma promessa que, tendo sido incluída no orçamento de Estado de 2021, não foi concretizada em tempo útil e até à data prevista de 1 de janeiro de 2022, pelo Secretário de Estado que era responsável pela pasta da energia. Acresce que este é um compromisso também ele incluído na Lei de Bases do Clima[1], que entrou em vigor em fevereiro de 2022, mas que tarda em ser totalmente implementada.
A Comissão Europeia em 2019, através de um Ato Delegado[2], deu um sinal forte sobre a necessidade de abandonar a utilização de culturas alimentares insustentáveis para a produção de biocombustíveis, estabelecendo os critérios para a determinação das matérias-primas com elevado risco de alteração indireta do uso do solo (ILUC). O óleo de palma foi logo à partida incluído nesta lista, devido à sua expansão para terrenos com elevado teor de carbono. Não é possível esquecer os impactes resultantes da expansão da cultura da palma que resultaram na destruição de ecossistemas ricos em carbono com as turfeiras e floresta tropicais, com destruição de habitat para o ameaçado orangotango, e pressão sobre as terras pertença das comunidades locais.
Foi definido, a nível europeu, um abandono progressivo até 2030 na utilização de óleo de palma para produção de biodiesel. Mas este era um calendário que poderia ser antecipado, dependendo de os Estados-Membros legislarem nesse sentido. Portugal, Países Baixos, Áustria, Dinamarca e França comprometeram-se no abandono desta matéria-prima insustentável no curto prazo, sendo que o compromisso destes dois últimos incluía a soja. A grande ambição de Portugal no pelotão europeu virou uma completa desilusão.
Existem outras culturas alimentares que, pelo seu forte impacte, importa abandonar no curto prazo, nomeadamente a soja, cujo contributo para a desflorestação de ecossistemas florestados como o Cerrado já levou a que países como a França abandonassem a utilização deste óleo vegetal para a produção de biocombustíveis.
Olhando para o cenário de produção nacional de biocombustíveis, e com base nos dados públicos disponibilizados no website do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), I. P.[3], para os últimos 4 anos – 2019-2022, constata-se uma ligeira redução na produção nacional na ordem dos 13% e um forte incremento das importações, com uma subida de 900%, de 18 694 m3, em 2019, para um valor na ordem dos 172 000 m3, em 2022, contabilizando biocombustíveis para incorporação no gasóleo e na gasolina.
Considerando que Portugal somente produz biodiesel[4], analisando os números, a aposta continua a ser na produção de FAME (com 98,12%, em 2022), um biodiesel de primeira geração, que utiliza na sua produção óleos vegetais virgens, óleos alimentares usados ou gordura animal, tendo a produção de HVO, um biocombustível avançado, evoluído para valores pouco expressivos, de 1,88% da produção de biodiesel em 2022. A aposta nos biocombustíveis avançados centrou-se nas importações.
Na produção nacional, os números indicam que tem existido uma evolução muito positiva no abandono da utilização de óleos alimentares virgens como a soja, colza e palma, com um consumo na ordem dos 16,32% em 2022, e uma aposta crescente na utilização de matérias primas residuais, de entre as quais se destaca a utilização de óleos alimentares usados (com 68,32%), e matérias-primas avançadas[5] (15,36% em 2022). Mas existe aqui um senão decorrente da dependência da importação. O contributo nacional com matérias-primas fica abaixo dos 10% (dados 2021). O exemplo dos óleos alimentares usados (OAU) é exemplificativo da situação. O mercado nacional de recolha de OAU somente garante cerca de 10% das necessidades da indústria de biocombustíveis, sendo os restantes importados de mais de 40 países, entre os quais constam Espanha, Malásia, Arábia Saudita e a distante China. Nos últimos 4 anos, foram importados mais de 600 000 m3. Esta situação de dependência da importação de matérias residuais para a produção de biocombustíveis que afeta não só Portugal, mas também outros países europeus, levanta sempre muitas dúvidas quanto a eventuais esquemas de fraude, que vão sendo pontualmente denunciados, como no caso que recentemente foi noticiado na Bélgica[6].
Os números indicam uma forte aposta na importação de biodiesel, com um crescimento entre 2020 e 2021, de 5 508 m3 para os 133 158 m3, com um ligeiro decréscimo em 2022 para os 116 637 m3, mesmo assim, um valor que corresponde a cerca de 30% de todo o biodiesel, incluindo o que é produzido e importado.
O incremento na importação de biocombustíveis, em especial dos biocombustíveis avançados, levanta algumas preocupações. O valor em 2022 situou-se nos 77 402 m3, dos quais, cerca de 68%, mais de 48 milhões de litros, são indicados como produzidos a partir de resíduos da indústria do óleo de palma, como são os efluentes de palma ou os cachos de palma vazios.
O boom de importações de biocombustíveis derivados de resíduos da indústria de palma seguiu-se a uma alteração legislativa em que o POME (efluente da produção de óleo de palma) passou a ter dupla contagem[7] para efeitos da meta de incorporação de biocombustíveis. A aposta, que anteriormente estava centrada na produção nacional e importação de biocombustíveis a partir de óleo de palma, essencialmente para HVO (Óleo Vegetal Hidrogenado), passa agora muito pelos biocombustíveis produzidos a partir de efluentes de óleo de palma e cascas vazias de palma. Ou seja, continuamos a falar de palma e de um estímulo a uma indústria com fortes impactes ambientais.
É ainda de referir que, em 2022, mais de 58 milhões de litros de biodiesel produzidos a partir de óleo de palma e derivados de palma abasteceram os veículos a gasóleo dos portugueses. Destes, mais de 86% foram importados de países longínquos, mas que só poderemos especular, dado ser este um segredo bem guardado.
O LNEG, com competências como Entidade Coordenadora do Cumprimento dos Critérios de Sustentabilidade, publica anualmente um relatório sobre o cumprimento dos critérios de sustentabilidade na produção e importação de biocombustíveis, que de forma consistente tem melhorado na qualidade da informação que é apresentada, mas existem aspetos que podem ser melhorados.
O timing de publicação dos relatórios deverá ser mais próximo do período a que corresponde a informação. Publicar em maio de 2023 o relatório de 2021 perde por completo a sua relevância e pertinência. Para além disso, há ausência de dados tidos como fundamentais para que se possa efetuar um verdadeiro escrutínio da aplicação da legislação em vigor em tempo útil, assim como uma discussão sobre a política de biocombustíveis com base em dados fidedignos e atuais.
Se na componente de produção de biocombustíveis em território nacional existe uma grande transparência e grande pormenor nos dados referentes à produção nacional nas diferentes tipologias de biocombustíveis, matérias-primas utilizadas, percentagens e países de origem, quando olhamos para as importações de biocombustíveis, o cenário é distinto. Somente são disponibilizadas informações sobre quantidades, tipologia de biocombustíveis e as percentagens de matérias-primas utilizadas na sua produção. A origem dos biocombustíveis é informação omitida.
Consta que estes dados são abrangidos pelo segredo comercial. Se este até poderia ser verdade, quando no passado a importação correspondia a uma pequena percentagem dos biocombustíveis incorporados em Portugal, hoje, quando cerca de 40% de todos os biocombustíveis são importados (contabilizando os que são incorporados no gasóleo e na gasolina), urge uma maior transparência, no sentido de permitir um escrutínio e monitorização por parte das partes interessadas, nomeadamente as organizações não governamentais de ambiente que se veem impedidas de efetuar uma análise séria e o cruzamento com os dados oriundos de outros países. Esta situação é tão mais grave quando existem suspeitas de fraude com o comércio de matérias-primas, nomeadamente residuais que podem estar a ser adulteradas, de forma a beneficiarem de um enquadramento fiscal mais favorável e de subsidiação, assim como de biocombustíveis importados para a Europa, que podem colocar em causa toda uma boa intenção de utilização de energias renováveis e redução de emissões implícita na Diretiva das Energias Renováveis.
O futuro dos biocombustíveis vai no sentido da redução da utilização de culturas alimentares. O governo deu um sinal claro no Plano Nacional de Energia e Clima, ao indicar que biocombustíveis a partir de culturas alimentares para consumo humano ou animal com elevado risco de alteração indireta do uso do solo, devem, até 31 de dezembro de 2030, decrescer gradualmente até 0%. Contudo, se este pode ser um sinal positivo no âmbito de um eventual abandono da utilização de óleos de soja, é um retrocesso para o óleo de palma. Urge efetuar o seu abandono no imediato, e não até 2030, dando resposta às muitas promessas não cumpridas do governo.
Acresce referir que a aposta vai no sentido de apostar em combustíveis avançados em detrimento dos biocombustíveis de primeira geração. É o sentido certo, contudo é necessário acautelar que a produção de biocombustíveis a partir de resíduos também apresenta um problema. Os resíduos são finitos, pelo que existe uma limitação no alargamento da sua utilização que é necessário acautelar.
Como tal, torna-se fundamental efetuar um escrutínio sério sobre o mercado de biocombustíveis, para o qual é necessário:
Para além disso, e considerando que os recursos são finitos, torna-se importante apostar numa mobilidade diferente, com recurso a meios de transporte coletivo mais eficientes e que deem resposta às necessidades dos cidadãos, assim como ao transporte partilhado, contribuindo para a redução de emissões e para a melhoria da qualidade de vida nas cidades decorrente da redução da pressão exercida pelo tráfego.
[1] Lei de Bases do Clima https://files.dre.pt/1s/2021/12/25300/0000500032.pdf
[2] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=uriserv:OJ.L_.2019.133.01.0001.01.POR&toc=OJ:L:2019:133:FULL
[3] Dados sobre os biocombustíveis https://www.lneg.pt/o-lneg/ecs/
[4] Portugal não produz Bioetanol e BioETBE para incorporar na gasolina, é todo importado.
[5] Parte A do Anexo IV do Decreto-Lei n.º 117/2010
[6] Artigo sobre fraude com biocombustíveis na Bélgica https://www.lecho.be/economie-politique/belgique/economie/votre-plein-de-diesel-cache-une-megafraude-a-l-huile-de-friture/10478496.html
[7] https://www.lneg.pt/wp-content/uploads/2021/02/ECS_DL-8-2021.pdf
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