Início » Subsídios agroambientais beneficiam projetos agrícolas que destruíram habitats protegidos
Levantamento da ZERO revela leviandade generalizada na alocação de fundos para projetos de agricultura industrial
Face ao claro desordenamento do território na área de influência do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva (EFMA) – denunciado em vários comunicados (aqui e aqui) – e à desvalorização e omissão, por parte das entidades responsáveis, daqueles que são os piores efeitos ambientais do modelo de industrialização agrícola assente no regadio, a ZERO fez um levantamento do estado geral de habitats, áreas protegidas e sistemas agroflorestais de alto valor natural no Concelho de Beja, um dos 20 concelhos abrangidos pelo empreendimento. As conclusões são claras: tanto a água proveniente do mega investimento público como os fundos da Política Agrícola Comum (PAC) estão a ser alocados a projetos de industrialização do espaço rural que levaram à destruição de habitats protegidos – uma subsidiação pública da destruição ambiental.
Subsídios ambientais com resultados catastróficos
A ZERO cartografou as conversões do uso e ocupação do solo para culturas permanentes de regadio (sobretudo olival, amendoal e vinha) nos espaços rurais do Concelho de Beja, identificando aquelas que ocorreram em zonas protegidas da Rede Natura 2000 e as que causaram destruição de Charcos Temporários Mediterrânicos (habitat prioritário da Diretiva Habitats), de montados e de sistemas agrícolas associados a quercíneas em áreas de intensificação interdita. Todo o levantamento foi feito fora dos perímetros de rega – embora muitos dos projetos agrícolas em causa sejam beneficiários de água de Alqueva através do chamado regime precário, que permite a cedência de água para fora dos blocos de rega através de uma contratualização anual.
A maior parte das intervenções destrutivas ocorreram após 2015 resultando, todas elas, em aparentes violações do disposto nos planos territoriais em vigor. Em causa está destruição de 18 Charcos Temporários Mediterrânicos e o desaparecimento de mais de 1.000 ha de sistemas agrossilvopastoris com azinheira e sobreiro (montados dispersos e povoamentos).
São cerca de 120 as parcelas com apoios do Programa de Desenvolvimento Rural (PDR) 2020 que causaram danos em habitats e sistemas agrícolas importantes do ponto de vista ambiental, ocupando 3.900 hectares (ha), com 1.500 ha a receberem apoios com objetivos ambientais, sobretudo para a Produção Integrada, com valores majorados para o regadio, e para o Uso Eficiente da Água, exclusivamente para regantes. Segundo os valores mínimos previstos no PDR 2020 e tendo em conta a dimensão das parcelas, poderão ter sido alocados mais de 460.000 € de subsídios públicos desde 2015 a projetos e práticas que, na realidade, serviram propósitos contrários às obrigações assumidas pelo Estado português na alocação de fundos da PAC.
Situações semelhantes repetem-se em outras áreas de regadio
O Tribunal de Contas no seu relatório da auditoria às medidas agroambientais[i] (PDR2020) admite que, apesar das taxas de adesão a estas medidas serem altas, não existem indicadores adequados para aferir os efeitos reais dos apoios alocados para a adoção de práticas agrícolas sustentáveis. A auditoria revela também um grande número de incumprimentos detetados pelos controlos do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP). Ainda assim são claras as lacunas na própria fiscalização, permitindo que a condicionalidade de acesso aos apoios da PAC não seja cumprida integralmente (nomeadamente o Requisito Legal de Gestão 3, referente ao respeito pela Diretiva Habitats e as Boas Condições Agrícolas e Ambientais 7 que exige uma manutenção das características das paisagens).
O levantamento no Concelho de Beja é uma pequena amostra do que sabemos passar-se noutros concelhos na área de influência de Alqueva e noutros aproveitamentos hidroagrícolas, em que os instrumentos de gestão territorial são ignorados, zonas protegidas são violadas e habitats protegidos. Extrapolando os valores encontrados neste concelho para toda a área abrangida pelo EFMA poderão estar em causa 20.000 ha de habitats protegidos e sistemas agrícolas de alto valor ambiental e paisagístico e 9,6 milhões de euros de apoios agroambientais associados a estes efeitos.
A ZERO considera que está em causa a integridade ecológica, paisagística e sociocultural de um vasto território, com prejuízos cumulativos sérios que serão amplificados pela crise climática. As próximas gerações estão a ser roubadas irreversivelmente de um património Natural incalculável, delapidação apoiada por fundos públicos.
Casos já denunciados à Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT)
Em Abril a ZERO denunciou à IGAMAOT o resultado perturbador do levantamento efetuado, solicitando que esta entidade fizesse uso dos seus poderes de inspeção para averiguar a conduta das entidades responsáveis.
A Inspeção-Geral encaminhou as denúncias para a Câmara Municipal de Beja, para o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) Alentejo e para o IFAP. A ZERO questionou recentemente estas entidades sobre o andamento do processo, obtendo apenas a resposta do ICNF.
O ICNF confirma a instalação de várias culturas regadas de forma ilegal em zonas protegidas e povoamentos de quercíneas, assim como abate não autorizado de árvores protegidas. O instituto aponta que 8 dos Charcos Temporários Mediterrânicos denunciados estão destruídos, no entanto não possui informação sobre o estado da maioria dos restantes – embora a competência de monitorização destes habitats lhe esteja legalmente atribuída[ii]. Também a resposta aponta que o limite de uma das áreas protegidas em causa (a ZEC[iii] do Guadiana, previamente SIC[iv]) foi redesenhado, perdendo cerca de 440 ha, numa configuração que exclui importantes núcleos de flora ameaçada e que acaba por favorecer alguns dos projetos agrícolas denunciados. Verificamos também que houve a emissão de pareceres favoráveis à conversão cultural para agricultura intensiva em áreas incompatíveis com plano territorial vigente.
Voltamos a apelar às entidades competentes que exerçam uma vigilância redobrada nas áreas sob pressão de intensificação agrícola e que recorram a sanções acessórias que visem a reposição das situações anteriores às infrações cometidas para que a contraordenação não seja um mero custo de investimento para o infrator mas sim uma garantia de salvaguarda dos valores, assegurando que o ordenamento do território não está à venda.
A ZERO verifica que se continua a subsidiar um modelo agrícola destrutivo do ambiente, perante a ineficácia das entidades públicas e corrompendo os próprios objetivos das medidas da PAC. Sem as necessárias salvaguardas, o próximo quadro de apoios poderá seguir precisamente o mesmo caminho.
[i] Relatório do Tribunal de Contas: https://www.tcontas.pt/pt-pt/ProdutosTC/Relatorios/RelatoriosAuditoria/Documents/2021/rel008-2021-2s.pdf
[ii] Artigo 20.º-A do Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de Abril, na sua redação atual
[iii] Zona Especial de Conservação
[iv] Sítio de Importância Comunitária
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